terça-feira, 1 de maio de 2012

Por que só é possível filosofar em Grego e Alemão?



A referida frase foi escrita por Heidegger em sua tese de doutoramento. Ela data, portanto, de quando ele ainda não havia conquistado seu lugar no pensamento do século XX. Esse fato talvez seja suficiente para não darmos tanta importância a essa afirmação e deixarmo-la presa ao rol dos preconceitos dos filósofos. Nada obstante, esse doutorando se tornaria no pensador mais importante do século XX e, por força desse tornamento, tudo o que ele dissesse ganharia em relevância. Desse modo, não podemos fechar os olhos a essa afirmação; devemos investigá-la conferindo-lhe o respeito consoante a importância de quem a disse.
Nossa investigação é bastante limitada. Não analisaremos minuciosamente nem o idioma alemão nem o grego, sequer tentaremos dizer o que seja filosofar. Procuraremos somente descobrir de dentro da frase o encoberto nela. Na seqüência desse sentido, vejamos agora o que nos pode dizer essa frase. Primeiro, ela nos diz que filosofar é possível, depois que essa possibilidade só se concretiza em grego e alemão. Quanto à possibilidade do filosofar, não nos é difícil encontrar-lhe corroboração, haja vista os filósofos. Contudo, quanto a essa possibilidade só se concretizar em grego e alemão, não podemos senão trocar o advérbio pelo também e talqualmente encontrar-lhe corroboração. No entanto, a afirmação, infelizmente, não diz também ser possível filosofar em grego e alemão, mas ser possível filosofar em grego e alemão. Esse fato dificulta nossa tarefa, não no-la impede.
Como já assinalamos, não nos é difícil corroborar a possibilidade do filosofar. Basta-nos concordar com ser a empresa do filósofo o filosofar, se assim o fizermos, saberemos que isso tem-se feito possível há mais de dois mil anos.  A real dificuldade está na segunda parte da afirmação. Como corroborar só ser possível filosofar em grego e alemão? Talvez não o possamos, isso ou por não sermos capazes ou pela existência de vários filósofos em outras línguas ou ainda por amor a nosso idioma. Em consideração a esses possíveis impedimentos, não tentaremos validar essa segunda parte da afirmação, mas somente compreendê-la. Em vista disso, fazemos a seguinte observação: se, conforme Heidegger, a possibilidade do filosofar só se dá por meio do grego e do alemão, isso nos leva a crer que ele considera reunirem, esses dois idiomas, características as mais favoráveis para o filosofar. Por conta do dito, deveríamos agora investigar essas pretensas características, ainda assim não o faremos. Se o fizéssemos, teríamos de abordar tanto um idioma quanto o outro e isso tomar-nos-ia demasiado tempo e desmedida energia. Mesmo assim, não podemos nos esquivar de tecer algumas considerações tanto de um quanto de outro. Com esse fim, em vez de nós mesmos empreendermos uma análise mais cuidadosa, tomaremos o testemunho de quem, eles sim, tenham empreendido um intrometimento, se não em ambos, num ou noutro deles. Com relação ao alemão, Miguel de Unamuno no Volume VI de suas obras completas, à página 768, diz: “É indubitável que a língua alemã possui grandes vantagens para a investigação filosófica. Um prefixo, de significação necessariamente vaga, uma raiz, abstrata também, e um sufixo, igualmente abstrato, (...) isso tudo permite passar de uns conceitos a outros com grande facilidade e sutileza e refinar concepções filosóficas.”[1]
Considerando Unamuno, podemos dizer que, de fato, o alemão possui características favoráveis ao filosofar. Não obstante, é-nos lícito ainda perguntar: como ele veio a possuir essas características?  Uma possibilidade de resposta a essa pergunta encontra-se na consideração acerca do desenvolvimento do idioma grego feita por Bruno Snell em seu livro “A Estrutura da Linguagem”. À página 194 desse livro, ele escreve: “Demócrito, o fundador da doutrina atômica, foi o primeiro a procurar efetuar uma interpretação natural-científica ampla do mundo. A fim de conseguir isso com a língua que lhe estava disponível, precisou eliminar algumas formas lingüísticas e ressaltar outras. Ele desenvolveu seu sistema filosófico através do uso exclusivo de todas as formas lingüísticas que fossem relevantes para a cunhagem do sentido fenomênico da “representação”.[2]
Demócrito vê o mundo de um modo antes não visto, ele, a partir dessa nova vista, procura um meio através do qual fazê-la visível aos outros. O meio que ele encontra é a língua grega, todavia, ele não a poderia tomar tal como ela se apresentava no uso ordinário, isso porque a extraordinariedade de sua nova vista requeria um uso igualmente extraordinário do meio através do qual ela viesse a se mostrar. Destarte, Demócrito procede à transformação do idioma grego. Devemos entender essa transformação não como substituição do idioma de então por outro mais rico, mas como o levar esse mesmo idioma para além da formação de então. Essa trans-formação do idioma, podemos também dizer com descobrimento. Conforme ele vai fazendo uso filosófico de seu idioma, descobre-lhe várias possibilidades, e passa a destacar e fazer uso das que interessam à mostra dessa sua nova vista. Esse processo de descobrimento do idioma grego é empreendido igualmente por outros filósofos, assim nos conta Snell. Isso tudo conduz-nos a uma ponderação: se cada pensador grego faz uso de seu idioma para mostrar o que ele vê de novo, o idioma mesmo acompanha esse movimento ganhando novas possibilidades das quais cada um deles lança mão segundo o requerimento de sua vista. Sendo assim, quando Platão começa a filosofar, encontra um idioma amplamente desenvolvido, apresentando-lhe possibilidades ganhas no concurso de uma história de transformação concomitante do idioma e do pensamento gregos. Em respeito a essa concomitância, e ao seu estudo empreendido no desenvolvimento da linguagem, Bruno Snell diz à página 12 do mesmo livro: “Por, entretanto, o desenvolvimento do falar estar unido ao desdobramento do pensar, tal estudo da linguagem conduz à autoconsciência do homem e à descoberta do espírito; (...) e se nós quisermos apreender as condições de possibilidade do pensar na linguagem, talvez haja algo que aprender do que é afinal nosso pensamento e qual o sistema sobre o qual ele se funda, nesse caminho que vai do falar primitivo até o complicado e diferenciado.[3]
Por meio das considerações anteriores, ficamos sabendo que o uso da linguagem determina as suas possibilidades de uso. Isso é-nos dito ainda por outro profundo conhecedor do idioma heleno, o professor Henrique Murachco, à página 12 de seu livro “Língua Grega Vol. I”: “ (...) Platão, Aristóteles e outros (...) transformaram-na ( a língua grega) num instrumento perfeito, para exprimir com perfeição todos os matizes do pensamento humano.” A língua grega não nasceu perfeita para uso algum, bem distante disso, o uso que o povo grego fez dela foi determinando suas possibilidades de uso. À medida que havia poetas, foram-se desenvolvendo suas possibilidades de uso poético; à medida que filósofos, as de filosófico. Cada qual contribuindo para o desenvolvimento de seu idioma.
Esse mesmo uso possibilitou ao idioma grego uma riqueza estrutural e vocabular que se confunde com a própria riqueza dos pensadores e poetas gregos. E, em verdade, há mister de haver essa confusão, pois pensar e falar, consoante Snell, em nossa concordância, estão unidos, i. e., confundidos.
Essas observações e averiguações com relação ao grego, podemos aplicá-las também ao alemão. Com esse destino, valer-nos-emos de um pensador sui generis nesse assunto de agora: Leibniz. Yvon Belaval, em seus “Estudos leibnizianos”, dedica um capítulo à relação entre Leibniz e a língua alemã. Nesse capítulo, ele diz que não só para Leibniz, senão que também para Fichte, “a superioridade da língua alemã não está em sua origem, e sim no uso ininterrupto que dela tem feito um povo.”[4]  Novamente, vemos ser o uso o determinante da melhor possibilidade de uso, nesse caso, filosófico. Há, porém, um acréscimo na precedente citação. Leibniz considera a língua alemã superior às demais no seu uso filosófico. Antes de focalizarmos essa pretensa superioridade, precisamos ainda caracterizar o gênero desse uso que o povo alemão vem fazendo de sua língua. No mesmo livro à página 28, Yvon Belaval, citando Leibniz, escreve: “ ela ( a língua alemã) é para o real, a despeito de todas as outras, a mais densa e a mais perfeita; é que nenhum outro povo cultivou com mais desvelo, durante muitos séculos, as artes concretas e a mecânica; a tal ponto que mesmo os Turcos, nas minas da Grécia e da Ásia Menor, designam os metais por nomes germânicos.”[5] O que caracteriza o uso do alemão é, então, a “concreção” e a “mecânica”. De modo a sermos mais plásticos, passaremos a dizer que o alemão, acordados por Leibniz, é um idioma concreto e mecânico e que ele o é por força de os alemães virem usando-o concreta e mecanicamente. Nesse caminho, se o idioma alemão é perfeito, ele o é para a mostra de uma vista concreta e mecânica para mundo. Melhor dizendo, assim como o uso que Demócrito faz da língua grega é determinado por sua vista para o mundo; o uso concreto e mecânico que o alemão faz de seu idioma é determinado por uma vista para o mundo concreta e mecânica. A perfeição desse idioma delimita-se por essa vista.
Chegamos aqui a um ponto muito importante, desde o qual podemos completar, para melhor compreender, a afirmação de Heidegger que vimos tematizando. Ela soa agora assim: só é possível filosofar em grego e alemão, mas em alemão só é possível filosofar concreta e mecanicamente. A seguirmos essa frase, deixamos todas as outras possibilidades do filosofar ao idioma grego. Com procedermos nessa via, o que dizermos dos outros tantos filósofos em outras quantas línguas? Eles todos são somente repetições da filosofia grega. Mesmo os alemães começaram a filosofar imitando os gregos. Nisso não pode haver surpresa alguma, pois se os gregos descobriram a filosofia e a desenvolveram à grandeza não só de um Platão, mas ainda de um Aristóteles, todos os que se pusessem a seguir-lhes a empresa haveriam de imitá-los, sem, contudo, essa imitação causar constrangimento ou desprestígio algum.
Houve um começo da filosofia na Grécia, por isso não nos incomodamos em imitar os gregos e em dizer da perfeição de seu idioma. Será, porém, que há um começo da filosofia também na Alemanha? E se há, será que nós, ao filosofarmos, imitamos não só os gregos, mas também os alemães? E se é assim, será que, como com respeito aos gregos, nós também não nos constrangemos nem nos sentimos desprestigiados por essa imitação?  
Essas são perguntas difíceis não só por requererem demais de nossa indústria, senão que por melindrarem nosso brio; não, com certeza, nosso brio patriótico, pois não há tradição milenar em idioma português, mas nosso brio, digamo-lo, romântico.
De todo modo, consideraremos a primeira das perguntas, se há um começo da filosofia também na Alemanha. Ainda não podemos saber se há ou se não há tal começo, no entanto, se supusermos haver, já sabemos que só pode ser um começo concreto e mecânico. 
O caráter concreto e mecânico do suposto recomeço da filosofia na Alemanha é questão que tratar noutro espaço e tempo. Aqui e agora podemos somente rememorar que os maiores filósofos alemães são sistemáticos, ou seja, vêem o mundo a partir de um sistema concreto organizado mecanicamente, cada ponto fazendo mover o outro de modo a o resultado desses movimentos ubíquos ser coerente consigo mesmo e com a vista a partir da qual houve precisão de seu surgimento. Há, entrementes, uma exceção: Nietzsche. Ele não se encaixa nessa descrição, isso não por falta de coerência, mas por falta de sistematização.
O que, de fato, importa a nós é saber que Heidegger só pôde dizer o que disse, porque as duas maiores tradições do pensamento são a grega e a alemã. Vimos que o uso determina a possibilidade de uso, desse modo, o constante e pungente uso filosófico nessas duas línguas transformaram-nas em instrumentos perfeitos para o filosofar. Gostaríamos, ainda, de buscar outro testemunho para a importância do uso no desenvolvimento do idioma. Nesse caso, porém, não um que enobreça a língua alemã, pelo contrário, um que mostre ser ela capaz de se transformar no oposto de qualquer nobreza possível. George Steiner escreve em seu livro “Linguagem e Silêncio” à página 137, o seguinte: “O nazismo encontrou na língua exatamente o que precisava para expressar sua selvageria. Hitler ouviu, dentro do idioma pátrio, a histeria latente, a confusão, a qualidade de transe hipnótico. Ele mergulhou certeiro para dentro da vegetação rasteira da linguagem, para dentro daquelas zonas de escuridão e de clamor que estão na infância da fala articulada e que vêm antes que as palavras se tornem suaves e provisórias ao toque da mente. Ele pressentiu no alemão uma outra música além daquela de Goethe, Heine e Mann; uma cadência áspera, metade jargão nebuloso, metade obscenidade.”[6] Outra vez, vemos do que um idioma é capaz, não só o idioma alemão ou o grego, mas qualquer um; isso é o que ainda diz, mas adiante Steiner: “Um Hitler teria encontrado reservatórios de veneno e de analfabetismo moral em qualquer língua.” É, a partir de agora, que essa discussão passa a ser realmente importante para nós, brasileiros. 
Hitler encontraria em qualquer língua veneno e analfabetismo moral, e Hegel, será que ele encontraria o Absoluto em qualquer língua? E Heidegger, será que ele encontraria o Dasein em qualquer língua? Um pouco atrás, concordamos com Snell quando ele escreve estarem o pensar e o falar unidos, de modo que ao estudar um, descobre-se o outro. Termos visto isso faz-nos perceber que se o pensar e o falar andam tão contíguos, a tradição de pensamento tanto grega quanto alemã reflete-se na língua empregada nessa tradição. Conseqüentemente, não só o Absoluto de Hegel, como também o Dasein de Heidegger são palavras nascidas de uma tradição, por seqüência elas precisam dessa tradição para serem Absoluto e Dasein. Com isso, podemos responder nossa pergunta, dizendo que nem Hegel encontraria o Absoluto em qualquer língua, nem Heidegger encontraria o Dasein em qualquer língua. Eles só encontrariam o que a tradição dessas línguas lhes permitisse, pois qualquer transformação somente é permitida pelo haver de uma formação prévia.    
Precisamos perguntar agora: o que a tradição, por exemplo, em língua portuguesa no Brasil, permitiria a Hegel e a Heidegger encontrarem? Já vimos, a linguagem é requisitada pelo que se deve mostrar e o que se deve mostrar é o que se vê, é a vista. Hegel veria algo, e procuraria mostrá-lo fazendo uso da língua disponível, e se ela não apresentasse as condições necessárias para essa mostra, ele a transformaria para a apresentação dessas condições. Isso que ele visse acabaria por se mostrar, pois ver isso é permissão da tradição do idioma português e ela não permitiria o que não pudesse ser contido em si. Com relação a essa não contenção em si, gostaríamos de mostrar o que o idioma alemão não contém em si que, opostamente, o português contém ao máximo. Quem nos revela isso é o próprio Leibniz: “Em compensação, ela (a língua alemã) é, sem dúvida, a mais imprópria para exprimir as ficções, em todo caso mais imprópria que a francesa, a italiana e as outras derivadas do latim.”[7]  Leibniz faz essa ressalva, acreditando-a ser na verdade uma vantagem. Para esse claro vidente de um mundo concreto e mecânico, sua língua não se dar às ficções é grande vantagem. Em contraponto, nós, falantes de uma língua cuja tradição tem sua grandeza justamente no que Leibniz chama de ficção, na literatura, nós obviamente não vemos o mundo nem com essa pretensamente superior concreção do idioma alemão, nem com a sua mecânica. Como é, então, nossa vista para o mundo e como, portanto, Heidegger e Hegel o veriam em português? Quem nos responde é Caetano Veloso. Ele, em sua música “Língua”, fazendo clara referência a Heidegger, diz: “- se você tem uma idéia incrível / é melhor fazer uma canção / está provado que só é possível filosofar em alemão.” Essa resposta, ainda mais provocadora que a afirmação de Heidegger, descreve o caráter do uso de nosso idioma e, logo, o modo como por ele vemos o mundo. Dentre as várias revelações dessa "resposta", destacam-se duas: fazer canção é melhor que filosofar e, em português, é melhor fazer uma canção. Caetano diz: "é melhor fazer uma canção", mas não só isso. Se fizermos o necessário paralelo com a Segunda parte da frase em que ele diz: "só é possível filosofar em alemão", devemos completar a primeira e dizer: "é melhor fazer uma canção em português".  Agora podemos entender melhor a canção a qual ele se refere, pois apenas pode ser uma que se dê no idioma português e não em notas musicais. Essa canção é a musicalidade de nossas letras. Caetano Veloso está-nos apontando o que temos feito deveras, está-nos apontando a tradição de nosso idioma. Esse seu apontamento remete-nos aos que vem forjando essa vista para o mundo, aos nossos escritores. Todas as possibilidades de nosso idioma foram conquistadas por eles, contudo eles conquistaram-nas para a escrita literária, a qual foge muito à filosófica. A principal diferença de uma a outra está em que, enquanto para o filosofar, a língua é um instrumento para mostrar algo; para o fazer literatura a língua mostra-se a si mesma. Para o filosofar a língua deve ser o mais transparente possível a fim de se ver através dela o que ela pretende mostrar, pois isso está além de sua aparência. Para a literatura, acontece o inverso, a língua deve ser o mais aparente possível a fim de se ver a própria língua, pois ela está em sua aparência. Estamos avisados de que há filósofos com estilo refinado e há poetas profundos; isso, porém, não nos contradiz. O estilo do filósofo é requerimento de sua mostra, já o vimos em Demócrito, e os limites desse estilo demarcam-se por essa mesma mostra. A profundidade do poeta é outro ornamento de seu estilo, e está condicionado à beleza desse mesmo estilo. Essa fato é de fácil verificação, basta-nos comparar traduções; há as que privilegiam a profundidade, há as que o estilo. As primeiras podem ser-nos interessantes, as segundas são-nos belas. E qual, afinal de contas, é o destino da poesia, senão a beleza?
Mesmo sabendo que a profundidade é puro ornamento no escritor, podemos ir buscar nele um pensamento, afinal o único que temos. Quiçá encontremos em Machado de Assis um grande psicólogo, como o foi Nietzsche; e em Carlos Drummond de Andrade, um grande pensador do ser, como o foi Heidegger.
 Ezra Pound em seus “Ensaios Literários” escreveu que “os artistas são as antenas da raça,”[8] ou seja, aqueles que primeiro captam o espírito do tempo e o comunicam aos demais. No caso da Alemanha, suas antenas sempre foram os filósofos, no do Brasil, os nossos escritores. Precisamos ouvi-los, em ordem a estarmos no tempo certo e conhecermos a tradição de nosso idioma. Essa é a tradição que temos e é somente a partir dela que poderemos formar outra, outra porventura filosófica. “O povo faz o idioma e o idioma faz o povo”, disse Unamuno, e completa: “cada idioma é o melhor para o povo que o fala.”[9] Precisamos deixar nosso idioma nos fazer para procedermos a fazê-lo e, no nosso caso, essa feitura toma o aspecto de transformação.
A pretensão de tornar o português em um idioma perfeito para o pensamento passa pelo obstáculo de nossa vista. Primeiro é preciso ver depois mostrar o visto, acontece que a primazia dessa vista é a do próprio meio pelo qual ela se faz ver, o idioma português. A mostra dessa vista, contudo, não é entregue, não nos é possível circunscrever o que vemos na língua e então entregá-la como um livro para outros a verem. É-nos possível, apenas, trazer os outros para o mesmo lugar desde onde se descortinae essa vista para que eles, como nós, vejam seu alcance. Portanto, falar não é nunca uma entrega, mas um convite. Desse modo, nós, por meio de nossa exposição, estamos convidando aqueles que pensam em português a atentarem ao uso feito dele por nossos escritores, e ao próprio uso de modo a descobrirmos-lhe as possibilidades de um pensar claro e eficaz.    


[1] Unamuno, Miguel. Obras Completas Vol. VI: "La Raza y la Lengua". Ed.: Vergara. 1958. Barcelona. Pg. 768: " Es indudablemente que la lengua alemana tiene grandes ventajas para la investigación filosófica. Un prefijo, de significación necessariamente abstrata y algo vaga, una raíz, abstrata también, y un sufijo, igualmente abstrato, (...) eso permite pasar de unos conceptos a otros com gran facilidade y sutileza y refinar concepciones filosóficas." 
[2] Snell, Bruno. Der Aufbau der Sprache. Claasen Verlag Hamburg, 1952. Pg. 194. "Demokrit, der Begründer der Atomlehre, hat dann als erster eine 'naturwissenschatliche' Deutung der Welt umfassend durchzuführen gesucht. Um dies mit der ihm zur Verfügung stehenden Sprache zu erreichen, mub er bestimmte Sprachformen eliminieren und andere hervorkehren: er entfaltet sein philosophisches System dadurch, dab alle die Sprachformen, die vom Sinn-Phänomen des 'Darstellens' geprägt sind, allein für ihn relevant sind."
[3] Idem, Ibidem. Pg. 12 ."Da nun aber die Entwicklung des Sprechens an die Entfaltung des Denkens geknüft ist, führt solche Sprachbetrachtung auf das Selbstbewubtsein des Menschen und auf die Entdeckung des Geistes (...), und wenn wir an der Sprache die Bedingungen der Möglichkeit des Denkens begreifen, ist auf diesem Weg von dem ursprünglichen zum komplizierten und diferenzierten Sprechen vielleicht auch etwas darüber zu lernen, was unser Denken eigentlich ist, welches geheime System ihm zugrunde liegt."              

[4] Belaval, Yvon. Études leibniziennes. Ed.: Gallimard. 1976. Pg. 35. "(...) la superiorité de la langue allemande ne tient pas à son origine, mais à l'emploi ininterrompu que en a été fait par un peuple."
[5] Idem, Ibidem. Pg.: 28 "(...) elle est, pour le réel, à l'envi de toutes les outres, la plus dense e la plus parfaite; c'est qu'aucun peuple n'a clutivé avec plus de soin, depuis de nombreux siècles, les arts concrets et mécaniques; à tel point que les Turcs eux-mêmes, dans les mines Grèces et d'Asie Mineure désignent les métaux par des noms germaniques."
[6] Steinar, George. Linguagem e Silêncio. Trad.: Gilda Stuart e Felipe Rajabally. Ed.: Companhia da Letras. 1988. São Paulo. 
[7] Belaval, Yvon. Études leibniziennes. Ed.: Gallimard. 1976. Pg.: 29: "En revanche, elle est sans doute la plus impropre à exprimer les fiction, en tou cas plus impropre que le français, l'italian et autrs rejetons du latin;"

[8] Pound, Ezra. Literary Essays of Ezra Pound. Ed.: Faber and Faber Limited. London. Pg. 58.: "Artists are the antennae of the race."
[9] Unamuno, Miguel. Obras Completas Vol. VI: "La Raza y la Lengua". Ed.: Vergara. 1958. Barcelona. Pg.: 176." El pueblo hace el idioma y el idioma hace el pueblo" (...) "todo idioma es el mejor para el pueblo que lo habla."

Um comentário:

Rafael Lanzetti disse...

Embora seja simpático à tese de Heidegger, infelizmente, sendo linguista, não há como concordar com ela. Em teoria, qualquer língua do mundo é capaz de expressar, mesmo que por imensas paráfrases, qualquer coisa. As línguas antigas pertenciam a uma era da evolução linguística chamada "era sintética". Foi justamente a falta de clíticos que fez surgir as desinências e os infixos. Se é essa característica linguística que faz de uma língua uma ferramenta adequada ao filosofar mecânico, também seriam ideais todas as línguas contemporâneas sintéticas, como o russo, o finlandês, o islandês, além das línguas aglutinantes como o turco. Na evolução linguística diacrônica, as línguas que antes eram sintéticas, adquiriram cada vez mais características analíticas (o que ocorreu, por exemplo, com o próprio grego). Por outro lado, nações orientais com tradições filosóficas milenares tinham ao seu dispor línguas com sistemas gramaticais "simplórios", como é o caso do mandarim. A maior explicação para o emergir da filosofia alemã na chamada Época de Ouro é, na minha opinião, mais sociológica: tendo a Alemanha (ou seus estados formadores) chegado a um status social favorável, o intelectualismo começou a fazer parte da agenda social. Ao seu dispor, os filósofos tinham uma língua mecanicista, com características em comum ao grego arcaico. Talvez isso tenha feito com que a filosofia alemã (com a exceção muito bem apontada de Nietzsche) tenha se desenvolvido a partir de observações mecanicistas. A relação causa-consequência precisa ser repensada aí, assim como a etiologia da "superioridade" da filosofia alemã. Afinal, talvez tenha razão Wittgenstein ao limitar seu pensamento às possibilidades de sua linguagem.